Elas passam pelo exercício do Direito Internacional dos Refugiados e pela responsabilidade moral de países que contribuíram com a própria crise. E elas passam, também, pelo exercício do princípio da solidariedade internacional. A opinião pública é sistematicamente induzida a acreditar que os países europeus, e do Norte Global em geral, são os que recebem mais refugiados. Essa é uma inversão perversa dos fatos. Os que mais recebem refugiados são os países em desenvolvimento, fronteiriços aos países em crise humanitária. Não há focos de refugiados europeus (salvo o caso da Ucrânia, uma exceção). Todas as crises humanitárias se desenrolam nos países em desenvolvimento: na África, no Oriente Médio, na Ásia e na América Latina.
Os países de primeiro acolhimento – na terminologia do Acnur – são sempre os países em desenvolvimento próximos àqueles afetados pelas crises. Alguns exemplos impressionantes de recepção de refugiados são o Líbano e a Turquia em relação à crise na Síria; o Irã em relação às crises do Iraque e do Afeganistão; o Quênia, em relação à crise na Somália; o Equador e a Venezuela em relação à crise da Colômbia. O Direito Internacional dos Refugiados determina que as fronteiras devem estar abertas para a passagem de refugiados – que não podem ser devolvidos em nenhuma hipótese (princípio do non refoulement). Esses países em desenvolvimento, que não contribuíram para as crises de seus vizinhos, são obrigados a receber grandes fluxos de refugiados e o fazem sem cerimônias, cumprindo com seus compromissos internacionais e indo além, exercitando a solidariedade. Esses países de primeiro acolhimento são, de longe, os maiores afetados pela chegada de milhares e milhões de refugiados. Para refugiados que se deslocam aos milhares e permanecem em regiões de fronteira inóspita, o Acnur tem soluções temporárias, via logística humanitária. Porém, a crise econômica mundial, desde 2008, diminuiu dramaticamente os recursos canalizados para essas ações, impactando negativamente o orçamento da Agência que depende de doações, e não recebe verbas da ONU, salvo para o pagamento de seus funcionários. A essa situação crítica de escassez de recursos se somou a elevação de refugiados e deslocados internos, a um patamar que, após 70 anos, ultrapassou o número de migrantes forçados da Segunda Guerra Mundial.
Nesse contexto de grave crise humanitária, agravada pela crise econômica, que limita a ação do Acnur nos países de primeiro acolhimento, milhares de refugiados se lançam à arriscada aventura de buscar, por conta própria, países de segundo acolhimento; a Europa tem sido seu objetivo. Os países procurados pelos refugiados são principalmente da União Europeia (a Noruega é uma exceção). Diante do grande fluxo de refugiados, por terra ou pela via marítima, a UE tem tido uma postura que beira à ilegalidade, com o fechamento de fronteiras, ações para coibir a chegada de refugiados na origem e o estabelecimento de cotas rígidas de entrada de refugiados. Além das obrigações legais de receber refugiados e não devolvê-los, derivadas do Direito Internacional, já reconhecidas pela Corte Europeia de Direitos Humanos de Estrasburgo, no caso em que a Itália foi condenada (2012), a Europa tem a obrigação moral de acolher refugiados.
Esse imperativo moral advém da responsabilidade histórica pelo legado negativo do colonialismo e da responsabilidade pelas intervenções unilaterais no conflito da Síria, apoiando rebeldes e mercenários com armas e recursos de outra ordem. Não é possível eximir-se dessa responsabilidade moral no momento em que as vítimas de tais ações acorrem à suas fronteiras. Tampouco se pode imputar culpa somente a países individualmente considerados, como Grécia, Itália e Hungria, por meio do qual os refugiados alcançam a Europa. Pelo Direito Comunitário Europeu, todos os países da UE exercem controle migratório em nome do bloco, não apenas por um ato de soberania própria. A foto da criança curda, refugiada da Síria, encontrada morta numa praia da Turquia, que gerou comoção mundial, abriu uma janela de oportunidade para o exercício da solidariedade global, contrariando a tendência à xenofobia imperante. O papa Francisco contribuiu para instigar a solidariedade convocando cada família católica a receber refugiados. Frágil, essa janela de oportunidade se manterá aberta por pouco tempo. A sensibilização para a condição de extrema vulnerabilidade dos refugiados não é crucial apenas para as políticas de proteção, voltadas majoritariamente para soluções temporárias. Ela é tão ou mais importante nas soluções duradouras, em que as políticas de integração dos refugiados – que incluem acesso à educação, saúde, habitação, trabalho etc. – são absolutamente necessárias para sua integridade física e psicológica.
Solidariedade brasileira
Vale destacar que o Brasil vem acolhendo mais refugiados nos últimos anos e tomou uma iniciativa importante em relação aos refugiados sírios: em 2013, o Conselho Nacional para Refugiados (Conare) aprovou a Resolução n. 17, criando procedimento especial para concessão de vistos humanitários para sírios, uma via rápida para receber solicitantes de refúgio da Síria. Essa resolução, com prazo de dois anos, foi renovada pela Resolução 20, aprovada em setembro, gerando uma parceria entre o Brasil e o Acnur em termos mais abrangentes, celebrada em 5 de outubro, em Genebra. Embora a capacidade brasileira de recepção de refugiados, como país distante das zonas de conflitos e de segundo acolhimento, seja reduzida pela distância, a política proativa de recepção de refugiados, amparada no principio da solidariedade internacional, é digna de louvor e serve como exemplo para outros países.
*Gilberto M. A. Rodrigues é Professor do Curso de Relações Internacionais e membro da Cátedra Sergio Vieira de Mello para Refugiados da Universidade Federal do ABC. Pós-doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Notre Dame (EUA). Membro do GRI.
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