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Uma casa sem livros é como um corpo sem alma., Cícero

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quarta-feira, 21 de junho de 2017

Santo Agostinho, leitor de Platão: entre fé, razão e carne

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Aurélio Agostinho (354-430), mais conhecido como Santo Agostinho, nasceu em Tagasta, cidade situada na Numídia (atual Argélia), na África do Norte. Seu pai era pagão e sua mãe, católica. Aos 16 anos, em Cartago, estudou retórica. À época, rejeitava a fé e a moral cristãs. Viveu com uma concubina, Flora Emília, por dez anos, com quem teve um filho, Adeodato. Depois, partiu para a Itália, onde teve outra amante. Leu Hortensius, de Cícero, e assim despertou um interesse mais profundo pela sabedoria. Num primeiro momento, visando compreender como o mal e o amor influenciam a vida humana, estudou a filosofia dos maniqueus, que se guia por dois princípios básicos: a-) princípio da luz ou do bem, e b-) princípio das trevas ou do mal. 

De acordo com Wayne Morrison (nota de rodapé, p. 67), ambos princípios coexistem eternamente e em conflito. Isso refletiria o eterno conflito entre corpo e alma, no qual a alma é associada como luz em busca do bem, e o corpo como trevas cuja tendência é inclinar-se ao mal. Porém, com essas dúvidas, impasses gerados diante da ambivalência dos princípios presentes na natureza, como resolver o impasse? Como verificar se a natureza é realmente confiável? Morrison (nota de rodapé, p. 67-68) explica que Santo Agostinho recorreu ao neoplatonismo, no qual a busca de conhecimento seria basicamente o conhecimento dos fins últimos. Mas que, para ele, seria basicamente chegar ao conhecimento de que Deus existe e de que é preciso buscar a vontade divina. Aí, passou a conciliar a filosofia de Platão com o cristianismo. 

“Agostinho, como Platão, tinha paixão e sede de verdade: alcançá-la é chegar à felicidade; estes são os dois polos, dois pilares que sustentam o maravilhoso edifício da filosofia e da teologia de Agostinho”, coloca Olinto Pegoraro (p. 62). Converteu-se ao cristianismo em 386 e deixou de ser professor de retórica. A verdade, para Agostinho, passou a ser encontrada no interior de cada homem, de busca de auto-conhecimento, que, automaticamente, corresponderia ao conhecimento de Deus. “Conhecer-se e conhecer a Deus constituem uma única e mesma atividade do espírito, para Agostinho. 

Alma e Deus, como objetos de conhecimento, remetem a um estudo unificado de todo o mistério da criação”, falam Eduardo Carlos Bianca Bittar e Guilherme de Assis Almeida (p. 223). Em 396, foi nomeado bispo de Hipona, cidade portuária perto de onde nasceu. “A conversão de Augustinus, em 386, representou sua verdadeira adesão à filosofia, não no sentido de que não a praticasse anteriormente (maniqueísmo), mas no sentido de que sua profissão de fé se tornou o sacerdócio da palavra divina por meio de sua filosofia”, assinalam Bittar e Almeida (p. 212).

 Testemunhou a queda do Império Romano e a transição do paganismo romano ao cristianismo. “Em Santo Agostinho, é flagrante a preocupação com o transcendente, e isso não só em função de suas conversão para o cristianismo, mas sobretudo em função de sua profunda formação em cultura helênica, sobretudo tendo-se em vista o eco do platonismo nos séculos III e IV da Era Cristã. É certo que no teologismo da obra agostiniana vive-se o mesmo estremecimento pelo qual Agostinho passou quando de suas conversão. Isso porque a influência dos dogmas cristãos estão-lhe a perpassar gradativa e paulatinamente mais os escritos à medida que ganha maturidade seu pensamento”, explicam Bittar e Almeida (p. 211-212). Um adendo. A primeira concubina de Santo Agostinho, Flora Emília, foi retratada no livro “Vita brevis”, do filósofo e escritor norueguês Jostein Gaarder (autor de “O mundo de Sofia”). Trata-se de uma crítica dela ao desprezo sofrido depois do abandono do seu amado e da sua jornada para ela mesma se tornar uma filósofa. O próprio Gaarder diz que o manuscrito teria sido comprado num “sebo” na Argentina, porém, não havia possibilidade de se atestar a veracidade do mesmo. 

Conversão de Agostinho: conflito entre fé e carne 

Em Confissões, Santo Agostinho escreveu sobre sua conversão à fé cristã. A narrativa, embora com palavreado bíblico, é recheado de aflição, desejos e, por último, anseia a descoberta de um local onde a alma atormentada possa repousar. “Santo Agostinho travou uma luta com seu corpo e sua mente; vivenciou a instabilidade dos bordéis, da bebida e das prostitutas. (...) O caminho de Santo Agostinho para a humanidade é uma narrativa de ascetismo e renúncia. Devemos renunciar ao mal e lutar para superar quaisquer elementos de nossas vidas que sejam um obstáculo a uma vida mais elevada e verdadeira. 

O êxito da jornada depende de nossa capacidade de nos concentrar no que é essencial e de superar as distrações e os impedimentos”, afirma Morrison (p. 70-71). É importante também salientar a visão de ser humano que Santo Agostinho tinha, que foi formada a partir de três fontes, segundo Henrique C. de Lima Vaz (63-66): a-) neoplatonismo, a partir de Plotino, Porfírio e Mário Vitorino. Essa influência neoplatônica se mostra principalmente na estrutura do ‘homem interior’ coroada pela mens (o nous dos neoplatônicos), na qual “Deus está presente como interior e superior”, reitera Vaz (p. 65); b-) antropologia paulina, a partir da qual formulou a doutrina do pecado original e da graça, incluindo, ademais, a problemática da liberdade e do livre-arbítrio; c-) a antropologia da narração bíblica da criação, ou seja, o homem como imagem de Deus.

O caminho do verdadeiro conhecimento – ou da verdadeira filosofia – e do amor à sabedoria para Agostinho viria da moderação (também chamada por Platão de temperança), que protegeria os humanos dos extremos da curiosidade. Assim, não se deveria fazer perguntas ao cosmos (universo) no intuito de se assenhorar dele. Porém, com humildade dos homens – que deveriam conhecer sua limitação e dependência – para uma ascensão ao conhecimento mais puro e verdadeiro. Ou seja, Deus. “Nesse sentido é que se pode concluir que Deus preenche a existência humana à medida que a vida eterna é o destino de toda alma por Ele criada; galgar o pax aeterna é o destino de toda a alma. Assim é que se pode dizer que a alma é a vida do corpo, e que Deus é a vida bem-aventurada do homem”, dizem Bittar e Almeida (p. 220). 

Agostinho resgata a metafísica de Platão, com fortes doses da Palavra Evangélica, ao tratar dos problemas éticos, políticos e jusfilosóficos. “Santo Agostinho cristianizou a estrutura platônica ao explorar a tese dualista dos maniqueus – o mundo é composto pelas duas forças do bem e do mal, da luz e das trevas em permanente conflito – e a acusação cética dos acadêmicos – não há como o homem possa chegar a conhecer a verdade absoluta”, comenta Morrison (p. 68). Platão escrevia que as verdades válidas estariam no mundo das idéias, compreensível por meio da razão, e não no mundo sensível, compreendido pelos sentidos, como esplendidamente retratado no mito da caverna. A fé praticamente tomaria o lugar da razão, com a interpretação de Agostinho. Ou melhor, a razão subordinaria a fé aos seus desígnios. 

E isso serviria essencialmente para justificar a existência de fatos que a razão não consegue explicar. “Se as entidades fundamentais não podem ser descobertas pela capacidade de investigação do homem, elas devem ser aceitas com base na fé, e o papel da razão é construir estruturas baseadas na confluência da fé (e das coisas que nos são apresentadas através da revelação) e da razão. Fundamentalmente, Deus cria o cosmo e é o último obstáculo a qualquer tentativa de buscar comprovações lógicas da existência; portanto, a verdadeira sabedoria é a sabedoria cristã. A razão deve alinhar-se à revelação e, valendo-se de um instrumental lógico, criar argumentos baseados na segurança das entidades a nós reveladas. Filosofia é teologia”, escreve Morrison (p. 68-69). 
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Assim como o indivíduo que sai de dentro da caverna, e os olhos são ofuscados pelo Sol (simbolizando a aquisição do conhecimento), o fiel também se vislumbra perante a iluminação divina. “Portanto, para Agostinho a verdade não é uma teoria, como para os gregos, mas é um encontro, um mergulho da alma na fonte da Vida, no oceano da eterna luz. Para Platão o sol é metáfora, para Agostinho é a verdade em pessoa, Deus, única paixão de Agostinho; encontrar a verdade e com ela a felicidade e nelas repousar são uma só realidade. Agostinho exprime tudo isto numa famosa frase: ‘Tu nos fizeste para ti, Senhor, e nosso coração andará inquieto até que não repouse em ti’ (Conf., I, 1)”, comenta Olinto Pegoraro (p. 63). Mais uma vez, se repete a fórmula: filosofia serva da teologia. Arremata MacIntyre: 

“Desse modo, a fé que inicialmente move e informa a vontade é anterior à compreensão; o que a compreensão pode fornecer é uma justificação racional por ter inicialmente acreditado ou feito o que a fé determinou, mas tal justificação deve sempre ser retrospectiva. A racionalidade prosprectiva, compreendida em grande parte como Platão a tinha compreendido, é possível para o intelecto informado pela fé, posteriormente informando a vontade que a tenha e que continua a dirigi-la da mesma forma.”

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