Graças a alguns de seus ensinamentos mais importantes, esse conjunto de livros é sagrado para mais de 1 bilhão de pessoas que seguem seitas tão diferentes a ponto de serem monoteístas, politeístas ou panteístas – e ainda assim integrarem a mesma religião. Os historiadores acreditam que a primeira versão dos Vedas em papel seja do século 2 a.C., quando o povo hindu desenvolveu um sistema de escrita. Segundo a lenda, eles teriam sido organizados por Vyasa, um sábio que seria a encarnação de Vishnu, deus que em todos os ciclos de criação e destruição do Universo elabora as escrituras em 4 livros, para garantir que os cânticos se propaguem e se eternizem.
O mesmo Vyasa seria responsável por outros textos sagrados do hinduísmo, como o Mahabharata, ditado por ele a Ganesh, o deus com cabeça de elefante, que teria passado as palavras para o papel. Lendas à parte, os historiadores estimam que os 4 Vedas – RigVeda, Yajurveda, Samaveda e Atharvaveda – teriam sido compilados entre 1500 e 900 a.C. Mas, seja qual for sua origem, é nos textos védicos que estão os principais conceitos e símbolos do hinduísmo, os deuses, lendas e ensinamentos que dão forma e unidade à religião. “A essência da tradição dos Vedas é o respeito aos ancestrais e a vinculação aos deuses”, afirma Carlos Eduardo Barbosa. “Essas condições pautaram e pautam todas as correntes do hinduísmo.
Por isso, esses livros são aceitos como textos sagrados por todos os seguidores de todas as correntes”, afirma o cientista da religião Joachim Andrade, autor de uma tese de doutorado sobre a cultura hindu. Os Vedas foram cruciais no período inicial do hinduísmo, porque ajudaram a aglutinar várias crenças pré-históricas em um mesmo sistema religioso. Mais tarde, no século 9, a religião passou por um processo organizado de unificação, e os textos védicos foram igualmente importantes para garantir a reunião de várias crenças diferentes em um mesmo sistema religioso. Na época, por influência de um sacerdote hindu chamado Adi Shankara, várias correntes do hinduísmo que não acreditavam nos antigos textos sagrados reconduziram os 4 livros ao seu espaço privilegiado nos rituais. Até porque seu conteúdo era aberto o suficiente para cada grupo tirar dele sua própria interpretação e multiplicar ainda mais as correntes hinduístas.
A multiplicação de crenças “Os Vedas são textos ritualísticos, e não uma enciclopédia de procedimentos religiosos”, diz Carlos Eduardo Barbosa, especialista em cultura hindu e professor do Instituto de Cultura Hindu Naradeva Shala, em São Paulo. Além disso, todos os textos incorporam um conceito filosófico que está na origem de todo o sistema de crenças hinduísta e permanece vivo na maioria das correntes existentes hoje em dia: o monismo. “Segundo essa filosofia, somos todos partes de uma coisa só, que é uma espécie de inteligência divina”, diz o historiador Edgard Ferreira Neto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Esse princípio de tolerância a outros credos presente nos Vedas distingue a religião hindu de muitas outras, em que a fé alheia não é vista com bons olhos, e permite uma convivência pacífica entre as correntes que nascem de cada interpretação diferente que ele permite. Carlos Eduardo Barbosa, que já foi à Índia várias vezes, dá um exemplo da unidade que existe entre os hindus, apesar da diversidade de crenças. “Nas ruas, em todos os cantos, você encontra devotos do deus Ganesh, por exemplo, convivendo em harmonia com devotos de Shiva. Pessoas que cultuam divindades diferentes se respeitam mutuamente, pois todos se reconhecem como hindus autênticos, apesar das diferenças.” E aqui vale dar uma idéia do que é a variedade de crenças do hinduísmo. Em relação aos cultos, existem 4 principais: vaishnavas, shaivas, shaktas e smartas. Entre outras particularidades, cada uma concentra seus rituais de devoção em deuses específicos – no shaivismo, por exemplo, a divindade mais respeitada é Shiva. Outro tipo de classificação leva em conta a filosofia de vida e a interpretação dos textos sagrados.
Nesse campo há pelo menos 6 escolas principais: sankhya, yoga, nyaya, vaisheshika, purva mimamsa e vedanta – todas têm, igualmente, suas respectivas subdivisões. “Trata-se de uma religião que incorpora a sabedoria de vários mestres, e que, por isso, abre espaço para inúmeras interpretações”, afirma Joachim Andrade. A variedade é tão grande que seguidores de crenças monoteístas, politeístas ou panteístas – que acreditam em um deus universal, em vários ou na presença deles em todas as coisas – tomam banho juntos no mesmo rio Ganges, todos debaixo do grande guarda-chuva hinduísta. Os shaivistas adoram Shiva, mas reconhecem a existência de outros deuses, logo, são politeístas. Os vaishnavas gaudias são devotos exclusivos de Krishna, e são considerados monoteístas. Já os vedantas acreditam que todo o Universo e a realidade são expressões de Brahma, princípio infinito, sem passado nem futuro, e se encaixam na categoria dos panteístas. Apesar das diferenças fundamentais, essas correntes têm pelo menos uma coisa em comum: “Todas as correntes aceitam os Vedas como escrituras sagradas”, diz Carlos Eduardo Barbosa.
Para muitos, a descentralização da doutrina é a grande responsável pela sua riqueza. Mas diante de tanta diversidade é natural que surjam correntes que se distanciam e, em alguns casos, acabam se transformando em religiões independentes. É o caso do budismo e do jainismo, que surgiram do seio do hinduísmo antigo e reúnem seguidores até hoje. O budismo surgiu por volta do século 6 a.C., por causa do descontentamento de alguns sábios e sacerdotes com os rituais e sacrifícios difundidos nos Vedas, entre outras características dos textos hindus. O jainismo, que se organizou a partir do século 7 a.C., tem como base doutrinária o princípio da não-violência contra todos os seres vivos como forma de alcançar a elevação espiritual. Outra corrente que ganhou contornos de religião independente foi o sikhismo, que surgiu no século 15 e defende a impossibilidade de encarnação e representação de Deus, entre outros princípios. De uma forma ou de outra, todas beberam da mesma fonte ancestral, antes de assumirem sua própria identidade. Seguindo seus caminhos como religiões independentes, elas também preservaram o ideal de tolerância cultivado nas civilizações do vale do Indo. Numa região em que tantas religiões nasceram, isso provavelmente foi uma condição fundamental para sua existência.
Divinas tetas
Na história do culto ao gado, bois podiam ser sacrificados. Vacas leiteiras, não No ocidente, o culto às vacas é tido como um dos principais símbolos do hinduísmo. E, de fato, o animal tem um status diferenciado na maioria das correntes da religião hindu. A origem dessa adoração remonta ao período em que os Vedas foram compostos, a partir de 1.500 a.C. “Uma das explicações é o fato de os habitantes da antiga Índia serem pastores nômades, que dependiam do gado para a sobrevivência e, portanto, precisavam proteger seus rebanhos”, diz o especialista Carlos Eduardo Barbosa. Ainda assim, no entanto, os animais eram sacrificados em rituais – mas as vacas leiteiras eram poupadas.
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