Esse artigo que esse incauto e intrépido blogueiro reproduz a baixo é o melhor artigo sobre Rock que eu li na minha vida, ele foi publicado pela Revista Cult
As primeiras gravações dos Beatles, quando comparadas com as de inúmeros outros conjuntos de rock surgidos na Inglaterra no mesmo período, não parecem revelar nada de excepcional. Os arranjos vocais são talvez mais caprichados que o da maioria das outras bandas, mas a qualidade do instrumental não é muito superior à do Dave Clark Five; quanto à potência sonora, sempre um fator importante em se tratando de rock, o conjunto não se compara aos Rolling Stones ou a The Who; e sem dúvida nenhum dos seus vocalistas está no nível de Eric Burdon dos Animals.
Em retrospecto, tem-se a impressão, por mais ilógica que seja, de que aquele primeiro público de algum modo adivinhava que os Beatles tinham algo de especial. Numa carreira que durou apenas oito anos, as realizações desses quatro músicos primitivos (o próprio George Harrison se autoqualificou de jungle musician) foram de fato impressionantes.
Os Beatles modificaram radicalmente o rock e o próprio conceito de música popular, introduzindo no circuito do consumo informações oriundas da música erudita e da música oriental. Além disso, é bem provável que a popularização da música clássica indiana no Ocidente por eles provocada tenha sido uma das fontes que impulsionou o minimalismo entre os compositores eruditos mais jovens. Foi também grande o impacto do conjunto sobre a indústria fonográfica: os Beatles estiveram entre os primeiros a gravar faixas que se estendiam muito além dos tradicionais três minutos, e devem-se também a eles a concepção do álbum duplo e a ideia de que a capa de um disco não precisa se limitar a reproduzir o retrato do artista sorridente, posando ao lado de seu instrumento.
A revolução desencadeada pelo quarteto de Liverpool teve início, de modo cauteloso, em 1965, quando saíram o álbum Rubber Soul, de 1965, em que George trocou a guitarra elétrica por um sitar numa faixa (“Norwegian wood”), e o compacto Yesterday, com acompanhamento de orquestra de cordas. No ano seguinte saiu Revolver, um disco ainda mais experimental, com um solo de guitarra executado com a fita tocando ao contrário (“I’m only sleeping”). Como todos sabem, a grande ruptura foi o lançamento de Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band, em 1967, seguramente um dos álbuns mais importantes da história da música popular, sobre o qual muito já foi escrito.
No entanto, revisitando o legado musical do conjunto, constato que o melhor dos Beatles é o álbum duplo que traz a capa em branco e ostenta como nome apenas as palavras The Beatles gravadas em alto-relevo e que se tornou conhecido como The White Album. Foi produzido em meio a uma intensa crise. No decorrer de seis meses de trabalho de estúdio, o conjunto chegou a se desfazer, porém as gravações continuaram; várias faixas foram concebidas e gravadas com a participação de apenas dois membros do conjunto, sem que os demais tomassem conhecimento do que estava sendo feito.
John Lennon, Paul McCartney e George Harrison já estavam cada um procurando um caminho próprio: Lennon desenvolvia o som agressivo e visceral que culminaria com o álbum do “grito primal”; McCartney já praticava o multiinstrumentalismo que exibiria em seu primeiro LP solo; e Harrison dava início a seu melhor período como compositor, que prosseguiria em Abbey Road, fecho de ouro dos Beatles, e floresceria pela última vez na sua obra-prima, o triplo All Things Must Pass.
O resultado final foi, como não podia deixar de ser, um álbum heterogêneo, descentrado, diferente de tudo o que os Beatles haviam feito até então. Logo no momento em que surgiu, parecia claro que aquele álbum imenso, com mais de hora e meia de duração, fazia uma espécie de levantamento geral da história do rock. O que ninguém podia imaginar, porém, é que ele continha também o prenúncio de boa parte do que viria a surgir nas décadas seguintes. É essa sua dupla natureza, retrospectiva e prospectiva, que torna o Álbum Branco uma obra única. É claro que ele não poderia ter tido o impacto de Sgt. Pepper: o caminho estava aberto, e tudo já se tornara possível num disco de rock.
Também não tinha o acabamento formal irretocável de seu ilustre antecessor, concebido como uma espécie de suíte pop em treze movimentos; muito pelo contrário, suas trinta faixas são desconexas e desiguais em termos de qualidade, variando do extraordinário ao péssimo. Mas essa heterogeneidade é precisamente um dos fatores que tornam o Álbum Branco o documento de época que é: se tivéssemos de escolher um único artefato para resumir o que 1968 representou para uma parcela importante da juventude ocidental, esse disco seria talvez a melhor escolha. Não é por outro motivo que a ensaísta norte-americana Joan Didion escolheu The White Album como título do livro em que tematiza 1968. Súmula do rock passado e futuro e mais completa tradução do ano que não terminou: vejamos de que modo o Álbum Branco consegue ser tudo isso, examinando-o faixa a faixa, tal como ele se apresenta ao ouvinte.
O primeiro disco tem início com um admirável pastiche de rock’n roll clássico assinado por McCartney, “Back in the U.S.S.R.”, alusão a “Back in the U.S.A.” de Chuck Berry, em que referências à União Soviética substituem as originais, aos Estados Unidos. Fora a sequência harmônica pouco ortodoxa no começo, tudo – a segunda parte, os riffs, o coro ao fundo, os jogos de palavras da letra – segue à risca a receita original; e o arranjo vocal lembra os Beach Boys gravando Chuck Berry, um pastiche de um pastiche. A segunda faixa, de Lennon, “Dear Prudence”, obedece à tradição presleyana de alternar rocks quentes com baladas mais suaves. Na terceira já entramos em território minado: em “Glass onion”, John Lennon retoma o clima entre transgressivo e nonsense de “I am the walrus”, realizando uma espécie de colcha de retalhos com fragmentos de letras e melodias de canções anteriores do conjunto.
A faixa seguinte, “Ob-la-di, ob-la-da”, é de uma banalidade tão gritante que parece ter uma intenção satírica, impressão confirmada pelo final inesperado da letra: a idílica história de amor termina com uma inquietante troca de sexo do pai de família (na verdade, apenas um erro de Paul durante a gravação, que acabou sendo deixado na versão final, de propósito). “Wild honey pie”, uma brincadeira inconsequente, funciona como introdução para outra melodia aparentemente infantil, desta vez de Lennon, “The continuing story of Bungalow Bill”.
O enlevo melódico é quebrado pela dissonância agressiva de “Happiness is a warm gun”, uma das canções mais cáusticas produzidas por Lennon até então, em que o tema da antiviolência é retomado. O lado A do disco 1 se encerra com Lennon declamando, num tom quase libidinoso, versos que descrevem o contato sensual entre um dedo e um gatilho. Só ouvimos um quarto do álbum, mas já estamos muito longe do rock puro e nostálgico de Chuck Berry.
Paulo Henriques Britto/ Cult
Pesquisa - Magno Moreira, o intrépido e incauto blogueiro de Cianorte PR
Dedico essa publicação ao meu amigo Fabio Gumiero, o Fabião.
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